Sábado, 05 de Outubro de 2024

ARTIGOS Domingo, 29 de Setembro de 2024, 17:23 - A | A

Domingo, 29 de Setembro de 2024, 17h:23 - A | A

FLÁVIO FÊO

Sobre o cuidado de si (II) – Desejo e paraske


“As relações entre sujeito e verdade devem levar em conta não apenas o conhecimento de si, mas também o cuidado de si".

Conhecer o próprio desejo... Essa é uma das tarefas mais difíceis no cuidado de si. É preciso se manter em alerta para vez por outra se perguntar: realmente quero o que desejo? É muito raro que realmente se queira o que se deseja. Justamente porque raramente sabemos o que desejamos. E depois, o objeto desejado demanda muito trabalho. Ter ou estar com o que se deseja pode se tornar cansativo, problemático, e até insuportável. É quando o desejo pode se confundir com o indesejado. Por isso a frustração, depois de lutar tanto e descobrir que o objeto do desejo não corresponde “exatamente” àquilo que se desejava.

Todavia, desejar é inescapável. Somos seres desejantes. Mas desejar não é o mesmo que possuir um objeto. De modo que são dois elementos que não costumam andar juntos. O desejo e o objeto do desejo. Daí a necessidade de averiguar constantemente: Eu realmente quero aquilo que desejo?

Neste ponto é preciso compreender, que o desejo é do sujeito que deseja, enquanto o objeto é apenas um lugar de projeção, e não tem nenhuma necessidade ou responsabilidade com o (teu) nosso desejo.

Posto isso, vamos prosseguir avançando em uma questão extremamente importante sobre o cuidado de si, as ferramentas de cuidado, as “paraskeué”, que são os equipamentos que têm a característica de preparar e equipar o sujeito do modo mais adequado diante das circunstâncias possíveis da vida. Existem tantas diferentes ferramentas de cuidado quanto são diversas as culturas de cada canto desse planeta. O mais interessante sobre isso é que temos diversas ferramentas, assimiladas ou não, de nossa própria cultura que estão aí, à nossa disposição, esperando serem reativadas, de acordo com o ethos e o “tempo” de cada um.

Ethos é nosso modo de ser no mundo, que para além dos hábitos e costumes, implica em liberdade. Quanto ao “tempo”, não se trata de disponibilidade, ou de cronologia, mas das condições espirituais pelas quais o sujeito rompe o tecido da temporalidade convencional e restaura as possibilidades permanentes de fazer uso das tecnologias de si. Quando falamos em condições espirituais nos alinhamos a Michel Foucault, que entende espiritualidade como um conjunto de técnicas e exercícios, que constituem o preço que o sujeito deve pagar para ter acesso à verdade.

A cultura brasileira é múltipla e por isso dispomos de uma grande quantidade de ferramentas de cuidado de si. O conhecimento dos povos nativos, a contribuição dos que vieram da África, da Ásia, da Europa, formaram uma multiplicidade de receitas, de sabedorias, de intuições, de ditos, de percepções que formam uma riqueza de dispositivos de cuidado.

Para ficarmos em um exemplo prático, gostaria de citar o uso do rapé indígena. Trata-se de uma medicina da floresta. A junção de tabaco orgânico em pó com uma ou mais ervas, usadas de acordo com o interesse de cura. Pode-se usar sálvia, mulateiro, paricá, tsunu, cumaru, etc... O rapé indígena é usado com um Kuripe, um aplicador feito da junção de dois canudos finos de bambu em que de um lado se assopra e de outro se coloca no nariz. O rapé indígena é sagrado e implica naturalmente em cuidado, por isso subentende também um pequeno ritual, em que o sopro e o tempo são primordiais. Em geral o rapé ajuda na concentração e aguça a percepção. Pode funcionar também para limpar a mente, o corpo, ou as vias respiratórias.

A história da assimilação e esquecimento do rapé no Brasil é muito interessante. Até meados do século XX era bastante difundido e tornou-se mesmo elitizado, além de visto como algo requintado. Ainda assim popularizou-se, distinguindo clientes através de marcas mais caras ou mais baratas. Encontrava-se rapé à venda em caixinhas de metal do tamanho de uma caixa de fósforo, em geral finamente decoradas, algumas feitas de ouro ou prata, mas também havia, como ainda hoje pode-se encontrar, caixinhas de alumínio. Por outro lado, havia também uma certa sombra de vício, principalmente pelo uso massificado e descuidado. Essa contradição marcou o uso industrializado do rapé.

A principal diferença do rapé “industrializado” é o fato de que além de ser adquirido em caixinhas de metal, se aspira, com uma das narinas (de cada vez), enquanto a outra é fechada com um dos dedos. A aspiração é feita sobre as costas de uma das mãos, na base, entre o polegar e o indicador. Já o rapé indígena é comercializado por lojas especializadas, em flaconetes de plástico de 10, 20 ou 30 gramas, além de ser usado através do sopro com auxílio de um kuripe. Ou ainda, se pode receber o sopro de outra pessoa através de um tepi ou tipi.

O rapé, portanto, é um elemento da cultura indígena que pode ser usado, de maneira respeitosa, para o cuidado de si. É uma ferramenta potente, na qual podemos consagrar, reativando mentalmente as mais diversas virtudes como a paciência, a serenidade e a sabedoria. Por fim, depois de consagrar o rapé de sua escolha, pode-se alinhar a mente em torno dos próprios desejos e tentar finalmente responder a estas duas perguntas: Primeiro: o que desejo? Segundo: realmente quero o que desejo?

FLÁVIO FÊO
Mestrado e Doutorado em Filosofia Contemporânea pela PUC-PR. Professor e pesquisador. Temas de maior interesse: Crítica da Modenidade, Tecnologias de si e Descontinuidade da História.