Não há quem não queira paz, quem não queira leveza. Estamos todos cansados da guerra contra a rotina, contra a chatice, contra o que nos pesa nas costas. A rotina que nos tira a humanidade, que nos torna mecânicos, que nos torna hamsters. Pequenos animais conformados à rotina de brincar, comer, beber e reproduzir sempre o mesmo. Uma vida chata, que se conforma aos mesmos roteiros, aos mesmos amores sem amor, às mesmas tarefas diárias, infindáveis. Enfim, essa soma de rotina chata que nos pesa todo dia mais. Uma espécie de existência pobre à mercê de um messias que virá nos finais de milênio.
Isso se ainda formos “um pouco” religiosos. E ainda que sejamos religiosos corremos o risco da velha confusão entre ética e moral. Entre um comportamento socialmente justificado, em que permanecemos hamsters, e o espaço escorregadio e desafiador que nos leva a sair da gaiola, da caverna, da rotina, da vida chata, mas que em compensação traz também algum perigo, algum desafio, algum exercício, porque a virtude implica que se faça algo de si mesmo, que sejamos outros, para que a vida seja abundante, rica, bonita. É o que alguns pensadores contemporâneos chamariam de uma estética da existência. Mas que no caso das religiões se traduz por conversão. Uma mudança, uma transformação. O que implica sempre num risco.
E aqui o paradoxo, a contradição. De um lado nossa busca pela paz (interior), através do condicionamento ao padrão da identidade, da moralidade, de ficar quieto em meio à multidão. De outro lado o fato de que a leveza implica numa ascese, um trabalho, um exercício. É o paradoxo entre a paz da água parada que com o tempo apodrece, se torna vício, e o desafio da água corrente que vez por outra arrasta pedras no caminho, gera mudança, transforma desde o interior até o entorno e que está sempre viva e limpa, como água de rio.
"Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. A minha alucinação é suportar o dia a dia..." (Belchior)
Superado este ponto, passamos a um segundo nível, o de saber o que realmente se deseja. Se realmente procuramos paz e leveza ou apenas nos iludimos com a falsa ideia de uma calmaria morna. Como aquele que repete diariamente as mesmas reclamações sem nenhuma intenção de que algo mude. Quem é que não viu o vídeo dos cachorros rosnando e latindo, cada um de um lado da grade, mas quando a grade é tirada imediatamente ficam calados. Há uma frase anônima que parece apontar para essa questão de nossa confusão sobre nós mesmos, na medida em que não nos esmeramos muito no cuidado de si.
Diz o dito: “Quem não sabe o que procura, quando encontra não percebe”. Talvez então o primeiro passo para o cuidado de nós mesmos seja exatamente isso. Nos perguntarmos sobre o que realmente queremos, o que realmente desejamos. Se além de desejarmos o desejo do outro como dizia Hegel, conhecemos os nossos próprios desejos.
Flavio Fêo tem mestrado e Doutorado em Filosofia Contemporânea pela PUC-PR. Professor e pesquisador. Temas de maior interesse: Crítica da Modenidade, Tecnologias de si e Descontinuidade da História.