Sim, mesmo sob um céu que escurecia a cada dia que mais parecia noite, um punhado de homens e mulheres alimentavam o sentimento e a ideia de resistir, de erguer um Não. Um não majestoso contra a escuridão.
Eram dias sombrios e entre aqueles que ergueram a voz como expressão da dignidade estava um intelectual, poeta amazonense residente no Rio e já relativamente conhecido. Com seus poemas de expressões fortes, cadentes, vivas, ergueu-se, ao lado de Ferreira Gullar [1930 – 2016], de Moacyr Félix [1926 – 2005], de Eduardo Alves da Costa [1936], entre alguns que agora cito, en pasant, recorrendo a uma memória que, fugaz, recua aos primórdios dos anos sessenta quando o imberbe secundarista começava o seu encantamento com a poesia.
Existiam outros, sim, claro que existiam como a história nos anos posteriores nos mostraria, mas é desses que agora recordo, como contemporâneos de Thiago e componentes da resistência que encontrava na poesia também um instrumento de combate.
A voz do amazonense expressava uma poética telúrica em poemas que conduzia o sangue ancestral, que estava na mais pura e legitima tradição da pátria. Seus poemas transportavam a angústia, mas traziam também uma esperança nova e reluzente. “Faz escuro, mas eu canto / porque a manhã vai chegar. / Vem ver comigo, companheiro, / a cor do mundo mudar.” E muitos e tantos fizeram desses versos o hino mais intenso a empolgar mentes e corações.
Então Thiago de Mello passou a ser um poeta mais querido entre tantos. Muito embora até àqueles anos não estivesse, por assim dizer, na primeira linha da poética nacional, seus versos incandescentes passaram a ser copiados em cadernos de tarefas escolares, alguns deles amanheciam nos muros e os quadros negros escolares apareciam com palavras deles retiradas, nos pátios das escolas eram recitados em pequenos grupos e nos bares da boemia estudantil ditos em meia voz, quando havia desconhecidos nas mesas próximas: “Deixa eu dizer teu nome, Liberdade / irmã do povo, noiva dos rebeldes / companheira dos homens, Liberdade. / teu nome em minha pátria é uma palavra / que amanhece de luto nas paredes. / Deixa eu cantar teu nome, Liberdade, / que estou cantando em nome do meu povo.”
Thiago havia sido adido cultural em alguns países vizinhos, Peru, Bolívia e Chile. Morava em Santiago quando, numa tarde, o senador Salvador Allende lhe dá notícia de que militares haviam deposto o presidente Goulart. [Nove anos depois seria a vez de Allende sofrer o terrível golpe]. Então retorna ao Brasil.
Em 17 de novembro de 1965 na Praia do Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro, um grupo de artistas e intelectuais se encontra em frente ao então Hotel Glória. Ali iriam se reunir os chanceleres de todos os países da América para o encontro da Organização dos Estados Americanos – OEA.
Cobriam o acontecimento repórteres e fotógrafos dos principais jornais e revistas do Continente. A abertura solene seria feita pelo presidente da República, general Castello Branco. Quando ele desce do carro, os manifestantes começam a gritar “Abaixo a Ditadura” e erguem cartazes com “Viva a liberdade”, “Bienvenidos a nuestra dictadura”, “OEA queremos Liberdade”.
Não tardou, e a segurança presidencial partiu para cima deles. No tumulto que se seguiu, Thiago conseguiu escapar e os demais foram presos.
Nesse entretempo ocorre um fato, no mínimo curioso e cômico. Mello espontaneamente se entrega. No Inquérito Policial-Militar, instaurado para ouvir os perigosos “subversivos” presos, ao lhe ser perguntado porque voluntariamente se entregara, Thiago responde que “sentiu uma ternura humana muito grande” pelos amigos presos. Andrada Serpa, o coronel que presidia o inquérito, considerou aquela expressão desapropriada “por ser muito poética” e de imediato determinou ao escrivão que a retirasse e em seu lugar colocasse “relações fraternais”, mais adequada, considerou o militar.
O habeas corpus ainda valia e, solto um mês e meio depois, saíram da cadeia. Logo logo o poeta ficou sob o visor e não somente dos censores. No seu encalço estava a polícia política. A coisa só iria se agravar cada vez mais. Para todos e para a cultura em especial. O poeta sentiu a barrar pesar.
Nesse tempo de incertezas quanto ao futuro, Thiago escreve aquele que é talvez o seu poema mais famoso, mais pungente e de luminosa inspiração: “Os Estatutos do Homem”, que tem como subtítulo “Ato Institucional Permanente”. Integrando o livro “Faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar”, por ele o poeta ousadamente decreta: “Fica proibido o uso da palavra liberdade / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio / e a sua morada será sempre o coração do homem”.
O livro, cujo título é retirado de um verso do poema “Madrugada camponesa”, foi publicado nesse mesmo ano de 1965 pela Civilização Brasileira, na época uma das mais importantes editoras do país, e teve uma versão musical, com o disco “Manhã de Liberdade”, em parceria com o sambista Mansueto Menezes e interpretação de Nara Leão.
O cerco se fechava e em 1969 Thiago parte para o exilio. Reencontra-se com um querido amigo, do qual se torna hóspede por meses. Pablo Neruda [1904 – 1973], já então tido como um dos poetas mais importantes da América e que alguns anos depois receberia o Prêmio Nobel de Literatura [1971], o acolheu com grande regozijo. Logo depois viria o general Pinochet e Thiago fugiu novamente.
Em 1977 retorna ao Brasil e é preso. Responde a longos interrogatórios e é liberado. O DOI – CODI registra em sua ficha que se tratava de um “delinquente confesso”.
Nesse entretempo, Thiago já se tornara poeta consagrado e suas muitas obras estavam traduzidas em mais de trinta idiomas.
Um tanto marcado pela desilusão com os rumos políticos do país, volta a viver na Amazonia, recolhendo-se à sua Barreirinha natal e posteriormente a Manaus, onde acaba de falecer aos 95 anos.
Nesse período, o poeta que colocara a sua voz a serviço de outras grandes causas, abraça decisivamente a ecologia, a defesa dos indígenas, a luta pela proteção das florestas e dos rios. “Amazonas: Pátria da água” retrata a história do povo ribeirinho, dos índios, a devastação da floresta, a invasão e a ganancia do grande capital por toda a extensão do rio Amazonas.
Os cantos, as estórias, as angústias e os sofrimentos dessa gente, mas também aponta o horizonte da esperança. Thiago cantou a floresta, o rio, celebrou os índios, o amor e a Liberdade. Dizer que Thiago é um ícone regional, como agora andei lendo, não é lhe fazer justiça.
Thiago de Mello nos deixa um exemplo de sua militância como intelectual, como um homem enfrentando os desafios e as responsabilidades de seu tempo. Para ele, o compromisso da arte não é apenas com o estético, mas com a ética, com o social, com os valores humanos. Sim, poetas como Thiago de Mello partem, mas permanecem, seja me permitido esse aparente paradoxo.
Quando o país vive uma situação quase surreal em que a ciência é atacada e sofre uma diuturna campanha de escarnio e desprezo, quando o pensamento racional é agredido, quando a cultura é chutada diariamente e está sujeita a solertes garras para desmoralizá-la e se multiplicam as tentativas de derruir conquistas históricas sobre os próprios escombros, em que existe real orquestração para a destruição de leis ambientais já consolidadas, em que parece existir plano articulado para o ataque sem tréguas às florestas e aos rios, aos bens ambientais e aos ecossistemas e a certeza que, sem dúvida, tudo isso trará como corolário consequente o colocar na berlinda os direitos humanos fundamentais, ora, diante desse quadro quase irreal mas cruel é impositivo lembrar Thiago de Mello com uma canção imorredoura, pois nos resta, ainda uma vez mais, celebrar “Os Estatutos do Homem”, começando assim:
Artigo 1. Fica decretado que agora vale a verdade/ Agora vale a vida/ E de mãos dadas/ Marcharemos todos pela vida verdadeira”
Sebastião Carlos Gomes de Carvalho é advogado e professor.