Em sua décima edição, o projeto ‘Quintais da Cultura Popular Cuiabana’ tem como objetivo resgatar as histórias dos quintais que conservavam grandes pés de mangueiras, rodas de conversas e festas religiosas para estimular a valorização e preservação da cultura e identidade cuiabana.
Através da emenda parlamentar do deputado Dilmar Dal Bosco (DEM), o projeto tem como intenção principal custear a revitalização da casa de dona Bem Bem, mãe do ex-deputado federal e ex-prefeito de Cuiabá, Rodrigues Palma. Além disso, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso (AL) destinou cerca de R$ 2 milhões de reais para que a obra fique pronta até dezembro de 2021.
Pelo meu conhecimento, uma casa dessa tem entre 200 anos e, se você preservar essa casa, ela vai durar a vida toda
Além da revitalização de imóveis, o projeto pretende realizar levantamento de dados, catalogação, inventário patrimonial e diagnóstico de cultura em 10 quintais, por meio de questionário e registro de foto e vídeo. Para os encaminhamentos, os integrantes do projeto se reuniram nesta terça-feira (6), no pátio da casa de dona Bem Bem, no centro de Cuiabá, para debater qual a melhor forma de desenvolver o projeto de restauração.
Segundo os historiadores, a casa de 'Bem Bem' surgiu por volta de 1820 e 1830, e se tornou um dos casarões mais antigos e tradicionais do quintal cuiabano, por isso, está sendo restaurado. A casa já foi palco das tradicionais festas, incluindo a Santo Benedito nas décadas de 1970 e 1980.
A presidente do Instituto Inca – Inclusão, Cidadania e Ação -, Cybelle Bussiki informou por meio de vídeo que o objetivo principal do instituto é que o projeto seja de extrema importância para que a comunidade, incluindo, escolas e cidadãos em situação de vulnerabilidade, como idosos, crianças e jovens valorizem e preservem a identidade, memória e patrimônio histórico e cultural cuiabano.
“Principalmente que ele esteja dentro do contexto cultural, social e urbano dessa cidade. Esse é o nosso objetivo para que esses quintais sejam sinalizados e depois trabalhar a questão da economia criativa”, disse.
Além disso, Cybelle declarou que a segunda etapa do projeto está ligada à economia criativa que visa produzir um e-book e realizar um fórum com líderes desses espaços, com palestras sobre Patrimônio Cultural e Economia Criativa e propor políticas públicas para o setor aos governos Municipal e Estadual.
A casa de Bem Bem, como ficou conhecida, está sendo restaurada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, segundo a superintendente do instituto, Amélia Hirata, todo material do imóvel vai ser reutilizado, utilizando a técnica original da casa, ou seja, para a restauração, usarão todo o sistema construtivo e o material do local.
“Essa casa tem um sistema muito interessante, nós temos paredes de taipa de pilão, ou seja, terra batida, além disso, as paredes internas são de adobe. O material do adobe nós já tínhamos na casa pois na época do desmoronamento, nós reaproveitamos o material. Pelo meu conhecimento, uma casa dessa tem entre 200 anos e, se você preservar essa casa, ela vai durar a vida toda”, pontuou Adão Rodrigues, técnico restaurador que está trabalhando na reconstrução da casa de Bem Bem.
O projeto “Quintais da Cultura Popular Cuiabana”, começou pelo quintal da ceramista dona Julia Rodrigues, no dia 24 de abril, em São Gonçalo Beira Rio, com objetivo de registrar a ampla variedade de saberes, ofícios e celebrações que existem nos quintais cuiabanos, não apenas centradas nas práticas e saberes do Cururu e Siriri, muito embora guardem uma estreita relação.
As visitas foram realizadas aos sábados, por uma equipe de professores, pesquisadores, com o auxílio de estagiários contratados apenas para este projeto.
As visitas
São sete meses de trabalho para a manutenção e resgate das raízes e tradições dos quintais cuiabanos, e das pessoas que os tornam vivos e deve encerrar no dia 16 de outubro, com um Fórum.
Deste processo já foram quatro meses e as visitas começaram por São Gonçalo Beira Rio, em dois quintais vizinhos: das ceramistas dona Julia Rodrigues e de sua irmã Cleide Rodrigues.
O segundo foi o espaço que desenvolve o Siriri, pelo grupo “Voa Tuiuiú”, no bairro Itapajé. Os valores transmitidos às crianças é o maior incentivo para manter o grupo vivo, que já tem 13 anos de tradição em devoção ao Santo Expedito, com o levantamento do mastro, Reza Cantada, jantar, bailão, com muito lambadão e rasqueado. Além do café da manhã, tudo com fartura em três dias de festejo, com a comida sempre de graça, seguindo a tradição de humildade, solidariedade e amor. Por lá o sistema é de coletividade e voluntariado.
O terceiro quintal foi do grupo Flor Serrana, de Siriri, Cururu e Reza Cantada, localizado em Aricazinho, na Zona Rural de Cuiabá. Moradia da Dona Helena Maria de Oliveira Nascimento, com a presença de Armindo Reis, ou seo Nezinho, presidente do Grupo Flor Serrana, com 45 anos de idade é dançarino do Siriri desde os 10 anos. Além de Alexandre Oliveira, cururueiro, mestre artesão da viola de cocho, ganzá e mocho, e capelão que tira Reza Cantada, junto com dona Fia, Luibertina Oliveira, vocalista do Flor Serrana, capeloa e dançarina de Siriri.
Uma tarde única, com um estudo profundo das raízes daquele grupo organizado e apaixonado, que reserva a cultura popular cuiabana há mais de 50 anos, na chácara Antônio Maria, próximo ao Pedra 90.
O quarto quintal, do Grupo de Siriri Flor do Atalaia, contou com a presença do secretário de Estado de Cultura, Beto Machado, e do adjunto Jan Moura, no bairro Parque Atalaia. Grupo predominantemente de mulheres, onde uma delas toca a viola de cocho.
A jornada do quinto quintal foi na famosa dona Domingas, onde funciona um Ponto de Cultura e o Grupo Flor Ribeirinha. Lá percebeu-se que a tradição é muito forte e repassada aos jovens e às crianças, que são fascinadas e amam dançar o Siriri.
O quintal de Tradição Coração Franciscano foi o sexto visitado. Ele apresenta uma série de saberes e fazeres, dedicados às práticas devocionais, às festas, danças, músicas, artes plásticas, de uma Cuiabá da região do Coxipó, gerador de sociabilidade, no bairro São Francisco, o mais antigo da região, com uma história de 83 anos.
Também teve quintal que preserva a cultura das matrizes africanas, sendo o sétimo visitado, na Associação Religiosa e Cultural Afro Brasileira, espaço ILÉ ÀṢẸ EGBE KÉTU ỌMỌ ÒRÌSÀ ODẸ, do babalawô ifálanã George Barajak, no bairro CPA 3, região Norte da cidade.
Vontade, força, talento e amor
A oitava visita aconteceu no “Quintal Flor do Campo” que é rico em potencial artístico, localizado no bairro Parque Ohara. Atualmente, ele é a estrela do “novo” Beco do Candeeiro, nos encontros culturais que acontecem toda quinta e sexta-feira.
Por lá, a anfitriã é a Matilde da Silva, que comanda com maestria a Associação Flor do Campo, um grupo familiar, composto por 12 pares para o Siriri, cinco tocadores homens e cinco backing vocal, todas mulheres, que aproximadamente 40 anos dançam, cantam e tocam, com a batida da saia, o gingado do corpo e o pisado tradicional apoteótico. A identidade do Flor do Campo está pautada na dança, com fé e devoção a São Sebastião.
Vontade, força, talento e amor é o que os cururueiros da Associação do Grupo Cururu Tradição Cuiabana do Coxipó tem de sobra e, inclusive, foram no nono quintal visitado e por lá é perceptível a grande saudade de cantar e aquecer a garganta com o amargo -bebida destilada com raízes-, de tocar e se jogar em uma função, ou seja, roda em que os curureiros se desafiam em coreografia em frente ao altar do santo. Exala nas batidas dos sapatos lustrados, na alegria e força do gingado, no canto afinado e na beleza do tocado da viola de cocho e do ganzá.
O grupo congrega uma média de 40 curureiros no quintal do senhor Marcelino de Jesus, presidente da Associação que atende mestres da região do Coxipó e alguns de Várzea Grande.
Neste quintal, localizado no bairro São Francisco, aconteciam as festas de São Gonçalo, São Benedito e São Sebastião, tradicionais no mês de agosto. E nele vivem 11 famílias, entre filhos, sobrinhos e demais familiares de seo Marcelino, que carrega na alma o Cururu.
As visitas do projeto “Quintais da Cultura Popular Cuiabana” encerraram com a histórica casa de Bem Bem, que está passando por restauração, com um processo peculiar, do adobe e material da época. Nela foi feita uma visita guiada pelo restaurador Adão Rodrigues, e contou com a presença da secretária Carlina Rabello e do adjunto Lioniê Astrevo.
O resultado
Além do levantamento de dados, catalogação, inventário patrimonial e diagnóstico de cultura nesses lugares, por meio de questionário e registro de foto e vídeo, o projeto “Quintais da Cultura Popular Cuiabana”, visa produzir um e-book e realizar um Fórum com líderes desses espaços, com palestras sobre Patrimônio Cultural e Economia Criativa e propor políticas públicas para o setor aos governos Municipal e Estadual.
“Esses dados estão demonstrando a extrema vulnerabilidade que as pessoas vivem, em que os jovens se encontram, e o quanto esse espaço, que é o quintal, concentra diversas frentes de trabalho que a sociedade necessita. O quintal em si é um espaço de promoção de igualdade, de mediação de conflitos, de cuidados, de trabalho mútuo”, define a antropóloga e produtora executiva do projeto, Poliana Queiroz.
Veja vídeo