Assim como o desejo, o amor também não tem fim. O amor não termina. O amor se modifica, se transforma, mas continua, permanece, porque assim como o desejo, o amor também é falta, é incompletude, é anseio. Terminaria se chegasse ao fim, ou seja, com a morte, a única razão pela qual deixaria de ser. Claro que neste caso falamos de umamor laico, em oposição ao amor religioso, pois bem, aquiele só termina com a morte. Mas estranhamente, de alguma forma, ele busca a morte, na medida em que busca o que lhe falta. Aliás, quando isso acontece é que se revelam as tragédias.
As melhores histórias de amor demonstram isso claramente, desde os clássicos da literatura, até às maiores bilheterias de cinema. Veja-se Romeu e Julieta, de Shakespeare, o grande amor que se desdobra na morte dos amantes. Ou ainda, no triste desenlace entre Rose e Jack em Titanic.
A questão aqui é que o amor é falta, é ausência perene que nos condena à impossibilidade de sermos felizes por amor. Porque se formos felizes já não haverá amor. A falta de felicidade é o próprio amor. Sim, esta é uma daquelas afirmações que nos incomodam, porque mexem com umailusão pela qual nos apegamos todos de maneira extremamente afetiva. A de que haverá alguém que nossaciará da fome do amor. Haverá um outro que finalmente irá nos completar, como no final do discurso de Aristófanes, no Banquete de Platão.
Pra quem não se lembra, em O Banquete, ou Symposium, talvez o livro mais conhecido de Platão, reúnem-se alguns amigos para celebrar o sucesso de Agaton, no concurso de tragédias. Para além de comer e beber os amigos decidem falar sobre o amor, e cada um dos convivas discursará sobre este tema. Irão se suceder nos discursos Fedro, Pausânias, Erixímaco, e o próprio Agaton. No entanto, os discursos mais lembrados são os de Aristófanes e Sócrates e é justamente entre estes dois discursos sobre o amor que propomos nossa reflexão.
O mito dos andróginos, como ficou conhecido o discurso de Aristófanes nos conta que os humanos eram seres bizarros com quatro pernas, quatro mãos, duas faces numa mesma cabeça e além de tudo isso, redondos edistribuídos em três gêneros. Os machos, que tinham dois sexos de homem, as fêmeas, que tinham dois sexos de mulher, e os andróginos, que tinham ambos os sexos. Resumidamente, pode-se dizer que por terem desafiado os deuses, estes primeiros seres humanos foram cortados ao meio e até hoje cada metade tem buscado a sua outra parte na esperança de finalmente se sentir completo novamente.De alguma maneira, conhecendo ou não o livro de Platão, na cultura ocidental, esta perspectiva de amor onde se espera encontrar a tampa da panela, ou a outra metade da laranja, como condição de realização amorosa, permanece inabalável.
Por outro lado, o discurso de Sócrates também tem seus adeptos. Sócrates faz o discurso mais esperado, com em geral nos Diálogos platônicos, contando que aprendeu com Diotima as coisas do amor, que dela teria ouvido que o amor é filho de Penúria e Engenho. Indigente e pobre como a mãe, habilidoso e desembaraçado como o pai, “dorme ao ar livre, perto das portas e nos caminhos, porque é igual à sua mãe e a indigência é sua eterna companheira (...); ora é florescente e cheio de vida, ora morre, depois renasce, graças à natureza que herdou de seu pai; o que adquire lhe escapa sem cessar.” Rico de tudo que lhe falta e pobre de tudo que persegue. O que é amor? A falta, a ausência do que se ama, e o desejo permanente de possuí-lo.
Recapitulando, temos no Banquete, se ficarmos nos dois discursos mais lembrados, Aristófanes, que nos diz o que queremos ouvir, isto é, que o amor é completude, é o encontro perfeito entre partes desejantes. O amor que sonhamos, enfim, que todos gostaríamos de ter. Aquele que nos fins de novela nos apresenta o casal (finalmente) feliz, como se a vida parasse num ponto de equilíbrio pleno em que pudéssemos permanecer saciados.
De outro lado, Sócrates, nos dizendo que o amor é incompletude, é falta, é a insatisfação permanente. Quando estamos juntos, nos sentimos saciados e precisamos de distância. Quando nos distanciamos sentimos mais uma vez a falta e nos tornamos inquietos, incomodados, na ânsia de possuir mais uma vez a pessoa amada, que só é amada porque nos torna aflitos, cheios de fome, de vontades nunca saciadas plenamente. Definitivamente não é o amor como sonhamos, não é calmaria e paz. Pelo contrário, é dor e sofrimento, esse é Eros, o mais violento de todos os amores. Sim, existem outras formas de amor, mas nenhum outro é tão rico em desilusão e sofrimento.
Flávio Fêo tem mestrado e doutorado em Filosofia Contemporânea pela PUC-PR. Ainda é professor e pesquisador. Temas de maior interesse: Crítica da Modenidade, Tecnologias de si e Descontinuidade da História.